Carta ao Leitor – Sofia Magalhães

Caro(a) Leitor(a) da RECICLA,

“É possível mudar o mundo a partir da nossa cozinha.” Sei que, à partida, esta frase pode parecer-lhe exagerada, estranha ou até impossível de concretizar. Também eu já duvidei dela e, se a tivesse ouvido há dez anos, nem teria compreendido a sua magnitude.

Numa era em que o acesso à informação é democrático e generalizado, deixámos de dar uso a um dos nossos bens mais preciosos: o nosso espírito crítico. O status quo instiga-nos a consumir e descartar: mais roupa, mais comida, mais experiências, mais tecnologia, mais filmes, mais música, mais tudo. E fazemo-lo, porque toda a gente à nossa volta o faz também, sem questionarmos por que o fazemos ou pensarmos no impacto das nossas ações. Sem consciência.

A minha caminhada rumo a uma vida mais consciente e sustentável tem sido evolutiva e contínua. Acredito que a vou levar comigo para a vida, como se tivesse acedido a uma zona do meu cérebro que até aqui estava interdita, mas que agora me permite ver tudo com outros olhos. Porém, ela só aconteceu porque, por um lado, me cruzei com pessoas visionárias e que me levaram a refletir sobre o lixo que gerava, como a Eunice Maia (fundadora da Maria Granel), e, por outro, porque me permiti parar e dar uso ao meu espírito crítico, questionando-me sobre os meus próprios hábitos. Comecei por questionar a minha própria saúde, a minha alimentação, de seguida os meus hábitos de compras e tudo isto se foi entrelaçando com a preocupação ambiental, porque não conseguimos estar sãos se tudo o que está ao nosso redor não o está. Somos parte da Natureza e, por isso, não podemos dissociar-nos dela.

A par desta tomada de consciência, fui trazendo para a minha vida várias mudanças, umas pequenas e fáceis de implementar, como começar a fazer caldo de legumes caseiro com cascas de vegetais ou passar a comprar a granel alguns alimentos, e outras mais profundas e desafiantes, como mudar-me para o campo e ter a minha própria horta. Outras ainda que tentei e falhei redondamente a implementar (e estou bem com isso, porque permito-me também ser imperfeita).

É comum ouvirmos que todas as mudanças contam, que todos os pequenos gestos fazem a diferença e outros tantos clichés que, na maioria das vezes, nos entram “a cem e saem a duzentos”. Quando fiz estas mudanças, acreditei, genuinamente, que estava a fazer a minha parte (e estava, ainda estou), porém, não conseguia afastar a sensação de ser uma “gota no oceano”. Foi só enquanto lia relatórios da Food and Agriculture Organization (FAO) sobre o desperdício alimentar no mundo, no âmbito da pesquisa que fiz para o meu livro, que me apercebi do potencial que cada um de nós tem nas suas casas, mais concretamente nas suas cozinhas. 

Segundo esse mesmo relatório 1., todos os anos desperdiçamos 1/3 dos alimentos produzidos no mundo. E se o desperdício alimentar fosse um país seria o terceiro maior emissor de gases de efeito de estufa do mundo, atrás apenas dos E.U.A e da China 2. Além disso, quando desperdiçamos alimentos estamos também a desperdiçar toda a cadeia de valor que nos permitiu que aquele alimento chegasse até nós, entre eles: água, solo, mão de obra, transporte e outros tantos bens preciosos e escassos.

Percebi, nessa altura, que reduzir o desperdício alimentar é o passo mais relevante para a sustentabilidade ambiental e está ao alcance de todos nós, consumidores. Comprar apenas as quantidades que necessitamos, privilegiar produtos sazonais, locais, bio, escolher e consumir produtos imperfeitos e saber aproveitá-los integralmente (da raiz à rama) são alguns dos passos mais fáceis e poderosos de implementar nas nossas casas. 

Mudar o mundo a partir da nossa cozinha é não só exequível como necessário.

1 – FAO — Food and Agriculture Organization. (2013). Food wastage footprints. Factsheet

2 – FAO — Food and Agriculture Organization. (2013). Food wastage footprints. Factsheet

Sofia Magalhães

Autora do livro “Da Raiz à Rama” e do Blog Da SPICE 

*créditos de imagem: Livro Da raiz à rama, editora zero a oito