Dois anos passaram desde que a RECICLA deu a conhecer a fundadora do movimento Lixo Zero Portugal. Agora, com um livro publicado e muito mais pessoas interessadas em seguir uma vida sustentável, o que anda a fazer Ana Milhazes, o que mudou na sua vida e o quais os objetivos para o futuro?

A primeira entrevista que deu à RECICLA foi em maio de 2019; o que mudou na sua vida nos últimos dois anos?
É engraçado, porque mudou mesmo muita coisa, quer a nível pessoal, quer a nível profissional. No início de 2020, mudei-me para a costa alentejana, que era um sonho já antigo, logo a seguir a ter realizado um outro sonho, que era a publicação do meu livro. E, com a concretização destes dois sonhos, também vieram muitas mudanças. O facto de vir para uma zona um bocadinho diferente foi um desafio em relação ao desperdício zero, porque, enquanto no Porto, já havia um conjunto de rotinas bem definidas, o vir para cá e a ideia de continuar a ter um estilo de vida mais sustentável foi um bocadinho mais complicado, na medida em que aqui, por exemplo, não há lojas a granel, há alguns sítios que vendem produtos a granel, mas apenas alguns e por vezes a uma distância maior.

Claro que há a grande vantagem de praticamente não ter de usar carro, a cidade é muito plana, posso andar sempre de bicicleta. No fundo, acaba por haver um estilo de vida com maior qualidade, vivemos mais devagar, porque todo esse estilo de vida acelerado também traz uma pegada ecológica bastante pesada. Uma outra vantagem é que, sempre que, de alguma forma, vivemos um estilo de vida diferente das outras pessoas acabamos por conseguir levar essa nossa maneira de viver, seja aos amigos, aos vizinhos, mesmo até às entidades locais. Por isso, desse ponto de vista, também foi bom poder partilhar a mensagem.

O que não mudou?
O que não mudou foi esta minha forma de ver a vida, de ver o mundo e de acreditar que todos nós fazemos a diferença. Por vezes, achamos que somos só um e que não faz diferença recusar uma palhinha ou uma garrafa de água, mas, na verdade, faz muita diferença mesmo. Essa continua a ser a base do meu trabalho: acreditar no poder individual. Claro que as grandes entidades, empresas, governos, têm um papel fundamental, mas não podemos ficar à espera que a mudança venha de cima e dos outros. Temos de mudar por nós.

Outra coisa que não mudou foi o simbolismo das pequenas coisas. Às vezes, achamos que queremos fazer muito, mas continuo a acreditar que só faz sentido fazermos pequenas mudanças e umas de cada vez. Não faz sentido de um momento para o outro mudar tudo, porque isso não vai ser sustentável para mim, nem para as pessoas que vivem comigo. Sou muito mais de pequenas mudanças.

Também não mudou a minha missão, que é falar sobre isto, sobre como é que todos podemos ter um estilo de vida mais sustentável, para connosco, para com o planeta, como podemos fazer a diferença com pequeninas coisas. Isso, de facto, não mudou, só ficou mais presente. 

Qual o feedback que tem tido do seu livro?
Tenho tido um feedback bastante positivo. O livro, apesar de ter saído há um ano, continua a vender, o que é ótimo. Eu acho que é um tema completamente atual, se calhar mais atual agora. Vou recebendo feedbacks bastante positivos, daquilo que as pessoas têm feito, do facto de acharem que a forma como o livro está escrito, com vários desafios e toda uma parte prática, que incita as pessoas a começarem, ajuda muito a que se comece a dar um passinho de cada vez.

Tem noção de quantas pessoas já conseguiu influenciar a mudar de estilo de vida ou a preocuparem-se mais com a quantidade de lixo que produzem?
Eu, por acaso, gostava de ter esse número. Já tentei calcular, mas não consegui bem…. Tendo em conta que já fiz mais ou menos 200 palestras e workshops onde, por norma, vão entre 20 a 30 pessoas, mas outras vezes estão cem pessoas ou mais, a acrescentar o impacto das redes sociais, que é ainda mais difícil de contabilizar, não faço ideia a quantas pessoas chego. Acredito que já tenha, de facto, chegado a muita gente, pelo menos a muito mais pessoas do que alguma vez imaginaria. Estou super feliz com isso.

Continua a conseguir produzir apenas um frasco de lixo por ano?
Continuo a ter esse frasquinho, na verdade o frasco já tinha vários anos, desde junho de 2017. Mas, agora, a minha realidade mudou um bocadinho. Como já não vivo sozinha, aquilo que tento fazer é continuar a colocar no frasco o meu lixo, mas não o da minha família. É como eu falo no livro: não vamos estar a impor o nosso estilo de vida às outras pessoas.

O que cabe/o que entra nesse frasco?
Molas da roupa, lâminas de barbear, lentes de contacto…. Sempre na esperança de que, mais cedo ou mais tarde, se vá reciclar este tipo de material que eu vou guardando. O que não dá mesmo para reciclar, continuo a colocar no frasco até porque, no fundo, além de ser um incentivo para mim própria, é também o facto de poder contactar as marcas.

Em termos de objetivos de sustentabilidade, o que já conseguiu atingir e o que é que ainda ambiciona fazer?
O grande sonho que quero mesmo realizar é ter uma casa completamente sustentável. Construir uma casa de raiz, sustentável e que possa ser partilhada, isto é, que possa ser aberta à comunidade, para que as pessoas possam vir ver como é que se faz para replicarem o modelo também nas suas casas. Esse é o grande sonho que gostava mesmo de concretizar.

No movimento Lixo Zero Portugal, diz que “a grande mudança está nos pequenos passos de cada um”. Qual foi o último pequeno passo que deu?
Há uma coisa interessante que tive de voltar a fazer. Nós fazemos uma coisa e achamos que está feito e não precisamos de voltar a fazer, mas a verdade é que a vida vai mudando e temos de nos adaptar. Uma das primeiras coisas que fiz, quando adotei este estilo de vida e que agora tive de voltar a fazer, foi colocar um autocolante de não à publicidade na caixa do correio. Isto, de facto, reduz imenso a quantidade de papel. Lá está, é uma pequenina coisa que tive de voltar a fazer, mas que faz uma grande, grande diferença.

No sentido de não criar desperdício desnecessário, qual foi a última coisa que recusou?
Normalmente, recuso mesmo muitas coisas que me querem fazer chegar. Têm sido mais produtos na área da sustentabilidade. Infelizmente, tenho de recusar porque não faz sentido eu estar a promover este estilo de vida e aceitar uma serie de coisas que não utilizo, seja sabonetes ou saquinhos de pano. São coisas que já tenho. Não me faz sentido continuar a aceitar.

E qual foi a última coisa que colocou para reciclagem?
Um pacote de arroz.